terça-feira, 13 de dezembro de 2011

Quando os Amantes Dormem



Quando as pessoas se amam e 
querem se amar, selam um pacto: 
dormir juntas.

E quando se fala "dormir juntos" o 
sentido é duplo: 
   
Significa primeiro amar acordado 
em plena vigília da carne, mas, 
depois, na lassidão do pós-gozo, 
deixar os corpos lado a lado, 
à deriva, dormindo, talvez.

Na verdade, os amantes, quando 
são amantes mesmo, mesmo 
enquanto dormem se amam. 

Agora ouço esses versos de Aragón 
cantados por Ferrat: 
"Durante o tempo que você quiser 
Nós dormiremos juntos".

E penso. É um projeto de vida, dormir juntos, continuamente. 
A mesma ambigüidade: dormir/amar 
juntos, dormir/acordar juntos, ou 
então, dormir/morrer de amor juntos.

Deve ser por causa disto que os franceses chamam o orgasmo de "pequena morte". 

Deve ser por isto que os amantes julgam poder continuar amando mesmo 
através da morte, como Inês 
de Castro e D. Pedro, que foram 
sepultados um diante do outro, para 
que no dia do reencontro um 
seja o primeiro que o outro veja.

Amor: um projeto de vida, um projeto 
de morte. 

Se numa noite dessas o vento da insônia soprar em suas frestas, repare no 
corpo dormindo despojado ao seu lado. 

Ver o outro dormir é negócio de muita responsabilidade.

Mais que ver as águas de um rio 
represado gerando uma usina de sonhos, 
é ver uma semente na noite pedindo um guardião. 

Pode ser banal, mas é isto: amar é ser 
o guardião do sonho alheio.

Os surrealistas diziam: o poeta enquanto dorme trabalha. 
Pois os amantes enquanto dormem, 
se amam. 
Se amam inconscientemente, quando 
seus desejos enlaçam raízes e seivas.

O pé de um toca o pé do outro, a mão espalmada corre sobre o lençol e toca 
o corpo alheio e, dormindo, 
se abraçam animados. 

Quando isso ocorre, pode ter vários significados. 
Talvez um tenha lançado um apelo 
silencioso ao outro: 
"Ajude-me a atravessar esse sonho", 
ou: 
"Venha, sonhe esse sonho comigo, 
é bonito demais". 

E o outro, às vezes, sem se mexer, 
parte em seu socorro.

É que certos sonhos, sobretudo os de 
quem ama, não cabem num só corpo. 

Transbordam os poros da noite e 
pedem cumplicidade. 

E se há um pesadelo, aí um se agarra 
ao tronco do outro na crispação 
do instante, e o corpo do parceiro é 
bóia na escuridão. 

Por isto, no ritual do casamento, 
quando o sacerdote indaga se os que 
se amam sabem que terão que se 
socorrer na saúde e na doença, na 
opulência e na miséria etc...

Deveria se inserir um tópico a mais 
e advertir: 
... Amar é ser cúmplice do sonho alheio. 
Passar a metade da vida dormindo a
o lado do outro. 

Há pessoas que vivem 25 anos - 
bodas de prata, 
50 anos - bodas de ouro, 75 anos - 
bodas de diamante; 
Ao lado do outro, e não sabem com 
que o outro sonha. 

E há quem passe uma tarde, uma 
noite ou uma temporada ao lado de 
um corpo e sabe seus sonhos 
para sempre.

Engana-se quem escuta o silêncio 
no quarto dos que amam. 

Estranhos rumores percorrem o
sonho alheio.
Não é o rugir do tigre pelas brenhas. 
Não é o bater das ondas na enseada. 
Nem os pássaros perfurando 
a madrugada. 

São os sonhos dos amantes em plena elaboração. 
E se numa noite dessas o vento da 
insônia de novo soprar em suas 
frestas, olhe pela janela os muitos apartamentos 
onde pulsam dormindo 
os amorosos. 
Quando se compra um apartamento 
novo, nas alturas, alguns compram 
lunetas e ficam vasculhando a vida 
alheia.

Mas para ouvir o ruído dos sonhos 
basta abrir os ouvidos na escuridão. 
Os sonhos pulsam na madrugada. 

Era uma vez um chinês que toda vez 
que sonhava com sua amada 
acordava perfumado. 

Deve ser por isso que, ainda hoje, 
o quarto dos amantes amanhece 
com um perfume de almíscar, lavanda 
e alfazema. 

E é comum achar troféus dos sonhos 
ao pé da cama de quem ama.
Quando se abre a pálpebra do dia, 
aí pode-se ver um unicórnio de ouro 
e uma coroas de rubis.

À noite os sonhos dos amantes 
se cristalizam e de dia se liqüefazem 
em beijos e lágrimas.

Quem ama diz boa-noite como quem abre/fecha a porta de um jardim. 
Não apenas como quem viaja, mas 
como quem vai para a colheita.
Quando se ama, acontece de um 
habitar o sonho do outro, 
e fecundá-lo. 

(Autoria: Affonso Romano de Sant'Anna)

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